A cláusula de incomunicabilidade e a justa causa testamentária

O artigo 1.848, caput, do CC estabelece que o testador poderá clausular os bens da legítima com as cláusulas restritivas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade, prevendo, ainda, a indicação de uma justa causa declarada no testamento. O artigo 2.042, por sua vez, estabeleceu o prazo ânuo para que, nos testamentos feitos antes da entrada em vigor do Código, o testador pudesse aditar o testamento, declarando a justa causa da cláusula aposta à legítima. Ocorrendo a abertura da sucessão após expirado o prazo de um ano, as cláusulas restritivas não justificadas seriam tidas como não escritas, sem qualquer comprometimento da validade do testamento.

Alguns autores consideram as cláusulas restritivas inconstitucionais, por ofenderem o direito de propriedade e sua função social, com a ampla garantia do direito de herança (artigo 5º, XXII, XXIII e XXX, da CF). Manifestamos, desde sempre, posição diversa, pois a autonomia privada, como esteio da liberdade testamentária, também goza de idêntico amparo constitucional e deve prevalecer no confronto com o direito fundamental de herança dos herdeiros necessários.

A justa causa exigida no artigo 1.848 deve ser a mais ampla possível, não se devendo buscar do testador detalhamentos exagerados e, muitas vezes, desconfortáveis. A orientação pretoriana tem se inclinado no sentido de relativizar o rigor da enumeração do artigo 1.848, não se impondo ao testador exagerado detalhamento dos motivos invocados, encontrando-se atendida a exigência legal “quando o testador explicita a sua preocupação com a preservação dos bens e com a própria subsistência dos beneficiários da liberalidade testamentária” [1].

A lei permite a interpretação da vontade do testador, franqueando ao juiz buscar, no próprio testamento, o verdadeiro alcance de sua vontade, e, desse modo, ampliar a abrangência da justa causa, concluindo que os seus motivos estejam subjacentes na própria cédula testamentária. Notadamente diante da cláusula de incomunicabilidade, que não representa restrição alguma à legítima. Mesmo depois de instituído o gravame, nada obsta que o titular do bem incomunicável dele disponha livremente, podendo aliená-lo ou doá-lo.

Nesse diapasão, é possível sustentar, em interpretação harmonizante dos artigos 1.848 e 1.911 [2], que só haveria necessidade de se justificar expressamente as cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade, não se exigindo o mesmo detalhamento da justa causa para a incomunicabilidade, cujo animus de proteção ao herdeiro lhe é consequência natural. Em outras palavras, a exigência de justa causa seria privativa das cláusulas de inalienabilidade e de impenhorabilidade, não atingindo a cláusula de incomunicabilidade.

Isso porque, a ratio da limitação da liberdade testamentária, com a exigência da justa causa, repousa exatamente na intangibilidade da legítima, não se admitindo que o poder de disponibilidade do herdeiro necessário sobre esses bens seja limitado, sem que haja uma boa razão para isso. Ocorre que a incomunicabilidade não configura restrição alguma à disponibilidade do bem pelo herdeiro, limitando-se a constituir norma protetiva. Não prejudica o herdeiro necessário, nem desfalca ou restringe a legítima.

A imposição isolada da cláusula de incomunicabilidade não atinge quaisquer dos atributos do domínio, possibilitando ao titular do direito de propriedade do bem incomunicável o mais amplo poder de disposição.

Aliás, a menção à incomunicabilidade, no artigo 1.848, sequer constava do projeto original do Código Civil. No Projeto de Lei nº 634/75 era facultado ao testador impor livremente a cláusula de incomunicabilidade. Na Exposição de Motivos do Anteprojeto de 1975, o professor Miguel Reale explicou que era exigida a justa causa expressa no testamento apenas para vedação à alienação, pois “havia necessidade de superar o individualismo que norteia a legislação vigente em matéria de direito de testar, excluindo-se a possibilidade de ser livremente imposta a cláusula de inalienabilidade à legítima”. Porém, a imposição da cláusula de incomunicabilidade sempre foi livre de amarras.

A redação atual do artigo 1.848 deve-se a emenda do relator-geral no Senado, senador Josaphat Marinho, que incluiu no caput a cláusula de incomunicabilidade. Todavia, tomando por empréstimo a crítica pertinente do saudoso e querido Zeno Veloso, “não devia ter sido incluída na previsão do artigo 1.848 a cláusula de incomunicabilidade (…) Por que impor ao testador o constrangimento de afirmar, justamente no ato de disposição de sua última vontade (…) que determina a incomunicabilidade porque seu filho casou-se com uma aventureira, que só do marido apaixonado e lerdo consegue esconder o objetivo de enriquecer, dando o ‘golpe do baú’?” [3]

Em conclusão, pode-se afirmar que a ausência de justa causa, expressa e pormenorizada, não torna ineficaz a cláusula de incomunicabilidade prevista em testamento, mesmo quando este houver sido lavrado após 11 de janeiro de 2004, não obstante as previsões dos artigos 1.848 e 2.042 do Código Civil, aos quais se deve atribuir interpretação sistemática e condizente com o estágio atual da autonomia privada no âmbito do Direito das Sucessões.

[1] TJ-DF; Rec 2014.01.1.018946-0; Ac. 914.635; 4ª Turma Cível; rel. desig. des. James Eduardo Oliveira; DJDFTE 3/2/2016; Página 194. Colhe-se, ainda, desse julgado que “somente pode ser desconstituída judicialmente cláusula de inalienabilidade inspirada em mero capricho do testador ou que não se revele claramente desprovida de substrato jurídico”.

[2] Artigo 1.911. A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade.

[3] Código Civil Comentado. Coord. Ricardo Fiuza. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 2.034. Idêntica a posição de Silvio Venosa: “O testador pode temer pelo casamento do herdeiro, quer numa união que ele já conheça, já existente quando a elaboração do testamento, quer numa união futura, desconhecida do disponente. Pela cláusula de incomunicabilidade, os bens assim gravados não se comunicam ao cônjuge do herdeiro, não importando qual seja o regime de bens do casamento. Enfim, temendo que seu herdeiro venha a consorciar-se com um ‘caça-dotes’, o bem incomunicável fica pertencendo só a ele” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito das sucessões – 4° ed. São Paulo: Atlas, 2004, 221).

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fonte: https://www.conjur.com.br/2022-jan-23/processo-familiar-oneracao-bens-legitima-clausula-incomunicabilidade-justa-causa-testamentaria

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