Sem tratado, transferência da pena pode se resolver com mera promessa

 

Na ausência de tratado que autorize a transferência da execução da pena de um país estrangeiro para o Brasil, a situação pode se resolver com mera promessa de reciprocidade, feita por meio de ofício e sem maiores formalidades.

Divulgação/MJ

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Ministério da Justiça processou regulamente o pedido de transferência da execução da pena de Robinho

Essa solução simples foi levantada pelo ministro Herman Benjamin durante o julgamento em que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça homologou a sentença italiana que condenou o ex-jogador Robinho a nove anos de prisão pelo crime de estupro.

Com algumas ressalvas, especialistas em Direito Internacional consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico confirmaram que a mera promessa de reciprocidade bastaria para resolver o caso.

Eles apontam que ela não vincula os países a casos específicos e futuros, apenas cria a expectativa de que a recíproca será verdadeira. Assim, a promessa precisa ser explícita. E, mesmo com ela, melhor será se houver tratado internacional formalizando o compromisso.

Para que complicar?

Resolver o caso com uma mera promessa teria sido, de fato, mais simples do que o desenrolar dos fatos no STJ. A República da Itália pediu a transferência da execução da pena para que Robinho cumprisse no Brasil a condenação, com base em tratados internacionais que não trazem essa previsão.

Pedro França/STJ

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Para Francisco Falcão, reciprocidade ficou assentada pela forma como os países trataram o pedido de transferência

Já o tratado bilateral de extradição, em teoria, não poderia se aplicar ao caso de Robinho, já que o Brasil não extradita brasileiros natos.

A saída encontrada foi aplicar, por analogia, outros tratados multilaterais que têm Brasil e Itália entre os signatários e que permitem a transferência da execução de pena. No entanto, esses acordos se referem a crimes específicos e que não abarcam o caso de estupro.

Relator do caso, o ministro Francisco Falcão citou a Convenção de Viena (sobre crime de tráfico de entorpecentes), a Convenção de Palermo (sobre organizações criminais transnacionais) e o Tratado de Mérida (sobre crimes de corrupção).

Ele também entendeu que há promessa de reciprocidade entre Brasil e Itália, a partir da forma como o pedido italiano foi tratado pelo governo brasileiro.

Inicialmente, o Brasil rejeitou o pedido de extradição de Robinho, mas sugeriu aos italianos que pedissem a transferência da execução de pena. E, quando isso foi feito, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública processou regularmente o pedido.

“Ou seja, o Poder Executivo assentou a existência da reciprocidade internacional do fato ao encaminhar o presente feito a este Superior Tribunal de Justiça”, concluiu o ministro Falcão.

Saída simples

Ao acompanhar o relator, o ministro Herman Benjamin fez considerações sobre o regime inaugurado pela Lei de Migração (Lei 13.445/2017), que em seu artigo 100 traz a previsão de transferência da execução da pena de condenados brasileiros no exterior.

A norma diz que isso será possível quando reunidos alguns requisitos, entre eles haver “tratado ou promessa de reciprocidade”. Isso aparece no inciso V do artigo 100.

“Portanto, a Itália poderia, em vez de ter pedido a aplicação do tratado, ter simplesmente feito uma observação com promessa de reciprocidade. Essa promessa pode ser feita a qualquer momento. Aliás, o tratado também”, disse o ministro Herman.

“E nada impede que a Itália, amanhã, faça um outro ofício complementar, uma nota verbal, à autoridade brasileira, esclarecendo que essa nota verbal traz implícita e explicitamente a promessa de reciprocidade”, continuou ele.

Nota verbal é a forma de comunicação entre os Estados, uma espécie de ofício. “A partir desse momento, não estaremos mais discutindo essa interpretação desse ou daquele tratado”, complementou o ministro.

Essa atuação supletiva da Itália não foi necessária porque, no mesmo dia, o STJ concluiu o julgamento e homologou a pena de Robinho. Ele foi preso dois dias depois e continua cumprindo a pena, embora ainda caibam recursos contra a homologação.

No fio do bigode

Segundo a doutora em Direito Internacional pela UFRGS Tatiana Cardoso Squeff, a promessa de reciprocidade é usada principalmente para justificar pedidos de extradição de estrangeiros condenados no exterior e que se encontrem no Brasil.

O Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência para considerar que a promessa de reciprocidade por meio de nota verbal é fundamento jurídico suficiente para legitimar o pedido de extradição passiva.

Essa é uma forma que um país encontra de dizer ao Brasil que, em algum caso semelhante, adotará a mesma conduta. Não existe vinculação a processos específicos futuros e nem mesmo a obrigação de cumprir essa promessa. Seu descumprimento não gera sanção.

É, portanto, um ato unilateral que parte do Poder Executivo estrangeiro e deve ser direcionado ao Executivo brasileiro. E pode, de fato, ser feito a qualquer tempo, por meio de mera nota verbal. O ideal é que conste já no pedido de transferência da execução da pena.

“A promessa de reciprocidade pode ser suprida posteriormente ao pedido feito pelo estado estrangeiro, como já aconteceu em processos de extradição. Mas não existe nenhum caso semelhante (ao de Robinho) porque é uma discussão inovadora”, disse a advogada.

Isso é tudo o que se sabe sobre o tema porque o Brasil nunca avançou para estabelecer o procedimento do pedido de transferência da execução da pena.

Decreto 9.199/2017, que regulamenta a Lei de Migração, traz no artigo 284 a previsão de que caberá ao ministro da Justiça e Segurança Pública editar ato para definir os procedimentos necessários para efetuar as transferências de execução de pena.

Esse ato nunca foi editado. Por meio dele, caberia, por exemplo, esclarecer de que maneira esse pedido pode ou não ser feito e esclarecer se pode ser suprido a qualquer tempo e por meio de nota verbal, como aventou o ministro Herman Benjamin.

Necessário formalizar

Para Tatiana, é de suma importância que a promessa de reciprocidade seja colocada pelo país que solicita a transferência da execução da pena de forma explícita, o que contraria o entendimento do ministro Francisco Falcão no caso de Robinho.

Doutor em Direito pela UFRGS, Andrea Marighetto aponta que o ideal é que as notas verbais trocadas entre países dentro de um contexto de negociação sejam registradas em ata, ainda que isso não expresse qualquer compromisso legal.

“A oferta de reciprocidade é procedimento que não exige a forma solene, pode ser realizada através de forma simplificada. Todavia, se não tiver ata assinada pelas partes que demonstre a existência desse entendimento conjunto, seguindo a principiologia do Direito dos Tratados e do Direito dos Contratos, há de se imaginar que será necessária uma forma qualquer que testemunhe oficialmente essa manifestação conjunta de troca de vontade.”

Emerson Malheiro, doutor em Direito Internacional, vai além ao apontar que seria altamente recomendável que essa reciprocidade se concretizasse por meio de tratado internacional, inclusive diante da possibilidade de serem fixadas consequências para o descumprimento.

Ele explica que esses instrumentos jurídicos especificam as obrigações e os benefícios, criando uma base legal para a reciprocidade nas relações internacionais.

Assim, Estados dificilmente estabelecem acordos apenas oralmente, sendo o tratado um instrumento, por excelência, para a sua configuração.

“É importante ressaltar que é possível a elaboração da promessa de reciprocidade oralmente, mas contraria o costume internacional. Quando um costume é internacionalmente reconhecido — como é o caso —, vincula e obriga como uma norma não escrita”, afirma Malheiro.

HDE 7.986

fonte: https://www.conjur.com.br/2024-mar-31/na-falta-de-tratado-transferencia-da-pena-pode-se-resolver-com-mera-promessa-ao-brasil/

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